segunda-feira, 10 de novembro de 2014

cigana sarita

6 225x300 CIGANA SARITA




Sarita acordava sentindo o cheiro das flores trazido pelos ventos que balançavam a alva cortina da janela. O sol estava radiante lá fora e embora ela já estivesse sentindo-se bem melhor, ainda não tinha coragem de sair da cama. O quarto aconchegante na sua simplicidade era convidativo ao descanso.
Distraída em seus pensamentos, nem percebeu a presença do enfermeiro que entrara com o seu desjejum e que parado a observava. Olhava os pássaros que pulavam de galho em galho num festival de alegria, como se estivessem saudando a vida, quando foi desperta pelo “bom dia” de Raul.
Raul lhe olhava e estava satisfeito em vê-la acordada. Ofereceu-lhe seu desjejum e informou que iria levantar da cama e ensaiar seus primeiros passos no seu mundo novo.
Apesar de não sentir capaz ainda de caminhar, foi convencida por Raul que a impressão que trazia, onde não sentia suas pernas, era do seu corpo mental e era apenas decidir que queria caminhar, e isso aconteceria. O enfermeiro continua dizendo a Sarita que as pernas que a acompanhavam além túmulo eram saudáveis.
Foram longos anos de dor e sofrimento, mas agora tudo havia acabado, era preciso que se conscientize disso e reagisse.
Com a paciência e disciplina de um instrutor, Raul conseguiu com que Sarita desses seus primeiros e cambaleantes passos. E em poucos dias entusiasmada com a beleza do local, esqueceu a suposta limitação e já caminhava feliz por aquele maravilhoso jardim, que mais parecia um bosque.
Passaram-se alguns anos do calendário terreno desde essa época e Sarita lembrava-se ainda emocionada de sua história triste com final feliz. Não havia como não recordar, especialmente agora que estava em treinamento naquela colônia espiritual para assumir um trabalho junto aos encarnados.
Apreensiva lembrava-se da manhã em que foi convidada a frequentar os bancos escolares, por seu “mestre-anfitrião”. Como estivesse já ambientada com o local e sabedora de como eram distribuídas as funções de acordo com a afinidade e principalmente necessidade de cada espírito, sabia perfeitamente que não seria chamada ao trabalho de “anjo da guarda”, mas tendo a certeza de que suas funções se dariam no plano terreno, isso a deixava temerosa pela experiência da última encarnação.
No curso, os ensinamentos todos recebidos eram perfeitamente adaptados ao aluno de acordo com as experiências trazidas e no final deste, Sarita não tinha mais dúvidas, trabalharia nas fileiras da nova religião que se instalava no país onde vivera sua última encarnação, a Umbanda.
Pelo seu conhecimento magístico mal aproveitado, teria que direcioná-lo agora para se fazer cumprir a lei. Em breve seria apresentada ao médium com quem trabalharia como Pomba Gira, mas de antemão já sabia que embora ele fosse umbandista, tinha preconceito com essas entidades. O desafio recomeçava.
Olhando a lua que bailava por entre as estrelas, Sarita deitada sobre a relva meditava, fazendo uma retrospectiva de sua última encarnação. Lembra-se de sua infância feliz vivida junto de muitas outras crianças, naquela vida nômade que levava sua trupe. A adolescência onde seus “dotes” ou poderes mágicos se acentuaram e quando começou a ser a cigana mais requisitada para ler as mãos das pessoas.
Sua tenda, onde quer que esteja sempre tinha freguês certo e era dela que vinha a maior renda para a sobrevivência do grupo todo.
Após uma febre muito forte sofrida em função de uma infecção adquirida, Sarita sentiu que seus “poderes” de adivinhação haviam sumido, mas de maneira alguma deixou aparentar isso ao grupo ou a quem fosse, e daí em diante passou a fingir e cobrar mais caro por isso. O dinheiro fácil passou a entusiasmá-la e como sempre fora muito vaidosa, agora podia se cobrir com as jóias mais caras e deslumbrantes e vestir-se com as sedas mais finas.
Tornou-se a cigana mais respeitada e logo assumiu o comando do seu grupo. A ternura angelical daquela jovem agora desaparecia, dando lugar a um radicalismo quase maldoso quando agia em defesa dos seus. Seu povo era muito perseguido e discriminado naquelas terras e isso fazia com que Sarita procurasse ganhar muito dinheiro e para tal não media conseqüências, para com isso adquirir poder e se impor diante das perseguições.
Numa emboscada que se fez passar por um acidente, Sarita desencarnou deixando seu povo sem líder e desesperado. A dependência de seu povo era tamanha que não sabiam mais pensar sozinhos e a morte daquela cigana a quem consideravam quase uma deusa os pegou desprevenidos. E nesse desespero buscavam a ajuda do espírito de Sarita, pois acreditavam que agora virara santa e que certamente, mesmo do outro lado, ela não desampararia seu povo.
Em função disso criaram cultos e os peditórios foram aos poucos, se espalhado além do povo cigano e o túmulo de Sarita virou santuário, com filas enormes de pessoas que se aglomeravam em busca dos milagres.
Ignorando a realidade do lado espiritual, não sabiam o mal que estavam fazendo aquele espírito que desesperado se via fora do corpo carnal, mas grudado nele, sentindo sua deterioração.
Em desespero total e agarrada as suas jóias com as quais foi sepultada, Sarita pedia auxilio. Os socorristas espirituais lá estavam querendo ajudá-la, mas ela sequer os enxergava dentro do seu desespero e revolta pelo acontecido.
Ouvia toda a movimentação que se fazia fora de seu túmulo e por mais que gritasse ninguém a ouvia. Se existia inferno, o seu era esse. Tudo aquilo durou longos e tenebrosos anos, até o dia em que seu túmulo foi assaltado durante a noite e os ladrões levaram suas preciosas joias. Em desespero, e assistindo a tudo, sem poder fazer nada para impedir, restando-lhe apenas um monte de ossos. Só então se deu conta de sua verdadeira situação e lembrou-se do que sua mãe a ensinara quando pequena sobre a vida após a morte. A lembrança de sua mãe a fez chorar, implorando que ela viesse tirá-la daquele sofrimento. Depois disso desacordou e só depois de muito tempo hospitalizada no mundo espiritual é que acordou, sabendo do isolamento que se fizera necessário em função das emanações vindas da terra, por causa de sua falsa “santificação”.
Seu povo agora usava sua imagem em medalhas que eram vendidas como milagreiras, além de manter seu túmulo como verdadeiro comércio, visitado por caravanas vindas de lugares distantes. Lembrava do dia em que, já curada e equilibrada, pode visitar aquele lugar junto com seus amparadores, para seu próprio aprendizado, bem como das palavras sábias de seu instrutor, que lhe disse que o mundo ainda teimava em manter os mercadores de templos. E ao Criarem os milagreiros que após o desencarne passam a ser santificados de maneira egoísta e mesquinha, preenchendo o vazio que a falta de uma fé racional se faz no coração dos homens.
Mentiras mantidas por pastores que visando o brilho do ouro, traçam caminhos duvidosos e perigosos para suas ovelhas, dando com isso, imenso trabalho à espiritualidade do outro lado da vida. Criando uma farsa que é mantida pelo desespero de pessoas ignorantes e sofredoras, obrigando o mundo espiritual a formar verdadeiros exércitos de trabalhadores com disponibilidade de atendimento a essas criaturas. Mesmo assim, por mais errado que seja esse tipo de atitude, a Luz o aproveita para auxiliar os necessitados mantendo ali um pronto socorro. E fora o sofrimento do espírito “santificado” que se vê vivo e impotente do outro lado, aliado a distorção comercial, esses lugares servem para que muitos espíritos encontrem ali o portal de retorno.
Sarita, tentando manter o equilíbrio e a emoção, observava o intenso movimento de espíritos trabalhadores socorrendo os desencarnados que vinham em bando junto aos romeiros e observava pela primeira vez como aconteciam os chamados milagres.
Uma senhora chorosa ajoelhada aos pés do túmulo implorava pelo espírito de Sarita a cura de sua filhinha que estava ficando cega devido a uma doença rara que exigia cirurgia caríssima, longe de suas possibilidades financeiras. A fé dessa mulher e o amor por sua filha eram tão intensos que de seu cardíaco e de seu coronário exalavam chispas luminosas que se perdiam no ar. Ao seu lado dois espíritos confabulavam analisando uma ficha com anotações e logo em seguida um deles, colocando a mão sobre a cabeça da mulher transmitiu-lhe vibrações coloridas que a acalmaram, intuindo-a a ter a certeza de que seu pedido seria atendido. Deixando algumas flores sobre o túmulo ela se retirou. Curiosa, foi ter com os dois jovens, querendo saber o que realmente acontecia nesses casos.
Os dois espíritos lhe falaram que analisam cada caso e dentro do merecimento de cada espírito e de acordo com a fé e sinceridade de propósitos, sempre respeitando a lei e o livre-arbítrio das criaturas envolvidas, procuravam auxiliar. Essa senhora seria procurada por um grupo de estagiários de medicina que mesmo como cobaia de seus estudos, levariam sua filha a fazer a cirurgia de que necessitava, devolvendo a visão a ela.
Diante daquela situação, perguntou aos espíritos que ali se encontravam se este milagre seria atribuído a ela. Olhando a cara de espanto dos dois, tratou de se apresentar e informar que ela era a Sarita. Com cara de espanto os dois cumprimentaram Sarita e um deles brincou que não era sempre que estavam diante de uma santa.
Com um sorriso amarelo, Sarita tentou em vão desconversar, pois agora a curiosidade deles era maior do que a dela em saber detalhe de como tudo isso havia ocorrido. E longe dali, em lugar mais propício, junto à natureza eles trocaram válidas experiências.
Mas agora tudo isso eram lembranças. Aquele espírito em cuja última encarnação terrena viera como uma cigana que se chamava Sarita, agora no mundo espiritual se comprometia e assumir um trabalho difícil no qual sentiria de perto, novamente o preconceito dos seres humanos.
Preconceito esse tão grande e revestido de tamanha ignorância que certamente muitas vezes seria tratada como verdadeiro “demônio” sendo expulsa como tal. Mesmo assim, sabia que teria que atuar dentro da lei e ignorando tudo isso, trabalhar com muito amor, auxiliaria os encarnados a se curarem das mazelas, pois só assim curaria as suas que estavam impressas em seu átomo primordial, carecendo de urgente reparo.
Enquanto seu médium girava no terreiro ecoando uma gargalhada que avisava a chegada de pomba gira cigana, romeiros continuavam buscando no túmulo da Santa Cigana Sarita, o milagre que ignoravam residir apenas dentro deles mesmos.http://portalguife.com.br/

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